terça-feira, 27 de março de 2007


Acordámos!


Ilustração: Miguel Furtado (www.flickr.com/photos/migfu)

EDITORIAL

“This town is a big pussy waiting to be fucked”*


Sejamos realistas. A geração que hoje vive em liberdade, que nasceu em liberdade e que, ao que tudo indica, viverá todos os seus dias em liberdade, é uma merda. Não sei ao certo se preciso de explicar o que aqui defendo. Esta convicção é mais uma questão de fé do que de racionalidade. O que é certo é que, e não querendo de forma alguma pôr-me acima dos demais que comigo partilham esta época, pois afinal, tenho consciência do meu próprio fedor, sinto-me privilegiado por reparar nisso. Aliás, defendo a recorrência ao empalamento para combater o excesso de merda que por aí anda. Tenho também a dizer acerca disto tudo que as minhas opiniões e ideias nunca foram muito populares…

Como disse, e dirijo-me especificamente às pessoas da minha faixa etária (dos 20 aos 30 anos), nascemos em liberdade, ou pelo menos, temos essa ilusão. O que é que fizemos com ela? Compramos uma Playstation e achamos isso divertido. Ouvimos música insípida e banal e achamos divertido, ao ponto de abanarmos as ancas. Vimos uns filmes do Michael Moore e achamo-nos revoltados e conscientes. Tirámos, ou estamos a tirar, cursos universitários e achamo-nos úteis. Vamos trabalhar para trás de balcões em lojas de roupa da moda e acabámos frustrados. É este o triste destino dos filhos da revolução. E nós que íamos ser todos artistas…

Infelizmente o tempo das revoluções colectivas acabou. Nenhum motivo parece suficientemente válido para juntar pessoas e gritar e lutar contra alguma coisa. Isto porque já temos tudo. Estas manifestações públicas que se vão fazendo hoje em dia, parecem-nos sempre (pelo menos a mim) exercícios puramente vazios. Manifestar por manifestar. Lutar por lutar. Não lutar por alguma coisa mas sim lutar simplesmente porque nos pareceu que o devíamos fazer. Acabaram-se as ideologias. Acabaram-se as convicções. Existe esse tudo que é nada: o centro, mais à direita ou mais à esquerda, não interessa.

Eu acredito, mais uma vez por uma questão de fé, que a próxima grande revolução será uma revolução individual. Ela já está a acontecer. Não sei se está no caminho certo mas ela está a acontecer… Os “jovens” de hoje fecham-se em casa a “teclar” com o computador… vivem “alienados” do resto do mundo. Cada vez mais “solitários”. Pode ser que algum dia, no meio da “solidão”, comecem a pensar… tomem consciência “de si próprios”. Que podem fazer “coisas”…

Bem vindos ao Dormitório! O tema da próxima edição é tema livre e sairá em Maio, depois do 25 de Abril, depois do dia do trabalhador… Podem começar a fazer “coisas”… a “pensar” em “coisas”… nós mostrámos aos outros o que quiserem… a cidade está à espera.

* Frase retirada do filme “Scarface”, de Brian de Palma.


Mário Gomes

AMOR CÃO


Patrício Torres

Espaço dos Marretas

Blogue dos Marretas

“Um supositório é um dormitório onde se fazem suposições”

Estouaki Estoutapoulos, filólogo cipriota e maneta

Dormitório

Se nos pedissem para fazer um jogo de associações (daqueles típicos da Psicologia) com a palavra dormitório, nós mandávamos o rapaz dedicar-se à apanha da azeitona descascada. Se fosse uma psicóloga, pedíamos com jeito para fazer o mesmo. Só que neste caso púnhamo-nos debaixo da escada a olhar para cima pelo buraco da mini-saia.

Mas se fosse, por absurdo, uma obrigação legal fazer esse teste, também não o faríamos, da mesma maneira que não pagamos o IRS nem vemos a RTP. A única lei que respeitamos é a que obriga todos os cidadãos do sexo masculino com mais de dezoito anos a servir o seu país, vendo no You Tube, tantas vezes quanto possível, o vídeo com a Merche Romero toda nua.

No entanto, ninguém nos pediu para fazer essa parvoíce de associar a palavra dormitório seja ao que for. Só por isso lembrámo-nos logo – embora uns Animais mais logo do que os outros – de dormitórios femininos em colégios internos e residências universitárias, ideia imediatamente aplaudida pelo resto dos autores, excepto um, que nesse momento se encontrava deitado no chão, a rebolar os olhos e a murmurar palavras incompreensíveis ou o Corão em Finlandês. Esse conceito de dormitório é bem mais agradável que as franjas urbanas onde as pessoas passam as horas sem sol. Por exemplo, se Massamá fosse uma cidade dormitório constituída por estudantes de pompons no cabelo em vez de crews com rastas na cabeça, talvez fosse uma zona onde nós já tivéssemos adquirido vários imóveis para uso pessoal.

Os preconceitos tendem a considerar as cidades dormitório como espaços deprimentes. Nós consideramo-los lugares com muita potencialidade. Por exemplo, são sítios com enormes oportunidades para o treino de rotweillers. Um miúdo suburbano, filho de uma operária e de um maquinista desempregado, repetente no 7º ano, sem nenhum futuro sorridente à espera, pode muito bem servir para praticar as capacidades de luta de um ou outro cãozinho simpático. Dessa forma, se não ficasse seriamente incapacitado para trabalhar na estiva, aprendia a fugir e/ou a lutar, habilidades bastante úteis para os encontros semanais com a polícia de choque que o futuro lhe reserva. É de forma consciente que alertamos para a importância de não olharmos para estes bairros de forma preconceituosa, só porque neles habitam os idiotas que compram o 24 Horas e vêem as novelas da TVI.

www.marretas.blogspot.com

O tempo destrói tudo



Se pararmos para pensar estamos a meio de um sonho. À partida era só uma cama, sem lençóis de metal nem mesas de cabeceira de velas e candelabros, era simplesmente um colchão vazio e carne humana. Uma imaginação tão fértil que nos atrasa mentalmente, retardando o cúmplice motivo da percepção. É a cultura, estúpido! Diz-se por aí. Pensar é, estranho. Pensa-se por todo o lado. Se pararmos para pensar, acordamos. Fugir às verdades num acto de desconsolo. Se lá estivermos, onde quer que seja, somos jogadores. Jogamos as coisas e arriscamos a vida, por mais facciosa ou falaciosa que seja. Se nos sugerem desconfiamos, como fazemos com o Cinema. Com a Arte. A Cultura, essa que poderia existir, se no transe completo ainda houvessem almas que fosse, que quisessem fazer, confeccionar, colocar à prova. Se do risco não surgissem consequências, a Arte seria bosta de cavalo. Não estaríamos de forma alguma agradados com ela.

Falo-vos de nada, porque o tempo destrói tudo. É Noé que assim o diz, ainda que não esteja sozinho. Se no universal sono todos estão desligados, no sonho global há alguns que se encontram atentos. Porque um interruptor só interrompe um estado, não uma causa. Se Irrevèrsible é um filme, é também uma vida, que há para ser vivida como outra qualquer. Enquanto vegetais, Irrevèrsible é de facto bosta de cavalo. Enquanto Homens, é um murro no estômago. É um despertador. Um terramoto, um meteorito, uma nova espécie a acolher. Eisenstein disse uma vez que a montagem poderia sugerir elementos compostos que actuassem como sensações primárias. Gaspar Noé forneceu, na prática, toda a teoria dos mestres analistas. O que é o Cinema? É nada. Medo, choque, revolta, compaixão. Sentimentos despoletados pela capacidade técnica do cinema de Noé: as suas características e dispositivos ajudam a reproduzir efeitos ilusórios na película, adequados à ideia, temática e objectivo do filme. É assim que Noé filma e, apreciando-se ou não, é de interesse investigar os seus processos de planificação, composição, iluminação e coloração, para um cinema mais vivo, cativante ao olho e repleto de emoções.

Coitados de todos nós, de todos vós, que o sono só interrompem para comer. Se não se calassem tanto até poderíamos ter discussão, nem que fosse acerca de beterrabas. Se vissem, se olhassem, se quisessem, teriam o mundo inteiro a debater, não só a qualidade dos bitoques e as vitórias do Benfica. Mas não só a imaginação faz o Homem, a procriação também. E se essa estiver em acordo mútuo, está tudo feliz, tudo contente, tudo a dormir... antes de um fantástico e provável orgasmo.

E se vissem filmes? Se os olhassem? Se lessem com olhos de quem lê e quer ler, de quem quer ver o que há para ser visto? Se procurassem, para matar o tempo em que fazem tudo menos alguma coisa? Ou então... não se preocupem. Não se incomodem. Não percam o tempo que têm para algo, esperem que o tempo destrua tudo, como nos filmes... de braços para a frente, e cruzes ao fundo.

Durmam... mas acordem bem dispostos.

Paulo Santos

No Dormitório


Não há muito a fazer por cá. Esperamos até amanhã, quando o sol mostrar os primeiros raios para fugirmos daqui. Não para sempre. Só até estarmos satisfeitos. Depois voltámos, e dormimos. Esperamos de novo. Até que o sol torne a brilhar.

São poucos, coitados, aqueles que se aventuram de noite pelas ruas. Não sabemos o que fazem estas criaturas nem quem são. Os seus vestígios estão espalhados por aí. Conseguimos vê-los antes de fugir. Pequenos papéis espalhados pelo chão, copos de plástico vazios a encherem os pequenos caixotes de lixo verdes e beatas de cigarros espalhadas pelas bermas dos passeios. Quando regressamos está tudo limpo e estamos tão cansados de fugir, que nos esquecemos que à noite também à vida por aqui.

No outro dia tivemos a ilusão de ouvirmos esses morcegos. Um barulho suave de risos e suspiros vinham da janela. Lembrámo-nos então dos vestígios que víamos todas as manhãs. Tivemos medo de ir espreitar e estávamos tão acomodadas nas nossas camas que acabamos por adormecer.

No fim-de-semana saíamos daqui, e regressámos a tempo de fugir. No fim-de-semana não fugimos, vamos apenas para onde temos que fazer.

Os barulhos nas noites intensificam-se. São cada vez mais regulares. Algo se passa e nós não temos a coragem para descobrir donde vêm estes barulhos; de descobrir quem os faz; nem de descobrir porque os fazem. Temos medo. De amanhã não estarmos prontos para fugir.

Tomámos uma decisão. Este fim-de-semana ficámos cá. Se tivermos coragem, saíamos à noite, e descobriremos esses sons, donde vêm. Se é que os há nestes dias…

O fim-de-semana passou, e há vida no Dormitório…



texto: Mário Gomes
Ilustração: Miguel Furtado

Todos os Dias o Miguel Sonha

Quando lhe pergunto porquê, não me responde, apenas me disse uma vez, sub-repticiamente, que quando nasceu o umbigo ficou ligado á lua. Não à mãe, nem ao pai, estranhei, dos quais me apercebo que tem uma relação alheada, apenas à lua. Se é fascínio, não sei... apenas o diz.

Dos seus um metro e sessenta, vagueia por aí, com um cabelo nem claro, nem escuro, de feições pouco marcadas, tal como tudo o que faz. Olhos profundos, mas mortos escondidos pela cara, e rodeado por umas orelhas pequenas, pequenas, como se tivessem sido esquecidas na profunda elaboração do seu corpo rechonchudo e recheado.

Ele vive vivendo, dorme dormindo e acorda sonhando. Nada na sua conquista diária é forte, louco, apenas tudo serve como passagem: uma ponte, um sorriso, uma mulher, um homem. Fala pouco dos seus amores, ou aliás nada. Tudo o que sabemos dele é que sonha. Muito!

Não revela os seus sonhos, diz que são a única coisa que tem dele e não quer partilhar, isso era dar de si. E sim, o Miguel nunca dá de si! De vez em quando larga um sorriso, um sobrolho que se ergue muito pausadamente, e vai libertando algumas palavras da prisão encarcerada que são os seus lábios vermelhos e tórridos.

Já me interroguei sobre ele, aliás todos o fizemos, mas ele funciona assim: vive vivendo, dorme dormindo e acorda sonhando. De episódios do seu dia-a-dia só conhecemos aqueles que partilhámos, nós com uma garrafa de cerveja na mão, e ele sempre com uma garrafa de água com gás natural. Dá-lhe prazer o efeito das bolhas no céu-da-boca, não por que nos diga, mas porque o seu corpo o revela. Não fuma, não bebe! Suponho que não lhe apetece, quando quiser fá-lo-á. Tentámos... mas em vão. Solta-nos um movimento ligeiro, leve e compulsivo. Desistimos! Poderia ser um observador, mas não, olha o vazio e sonha...penso eu..! Do Miguel sabemos com toda a certeza o nome do pai, da mãe, e do irmão, tudo o resto é imaginação... Inventamos histórias de um amante tórrido, de um virginal prostituto, mas nada, nem um movimento, nem uma expressão escandalizada...simplesmente o constante e eterno vazio...

Não sabemos se gosta de ler, de filmes., de televisão, apenas que sonha. Vive entre os outros para saborear o seu sonho. Delicia-se ouvindo, nunca perguntando e extasia-se quando a noite larga o seu vestido...Se dorme, se sonha, sei lá...apenas tenho como certezas que vagueia até casa.

Uma vez, seguimo-lo, a noite ia bem quente entre uns brindes ao curso, que finalmente está terminando. Nada. Sei que nos viu, mas nada se alterou. Passo meio lento, meio apressado chegou ao seu apartamento. Entrou... e de resto, um silêncio, um vácuo no movimento dos carros que por ali passavam. Entre os sussurros de uma noite bem quente viemos para casa tão satisfeitos como fomos. Sem saber absolutamente nada! O Miguel continua um mistério. Entre longas discussões sobre o seu estranho comportamento, nada de normal parecia surgir, muito embora, nós como elementos criativos, quiséssemos enfatizar a situação...paranormal, bipolar, tímido, tudo lhe foi associado, mas nada lhe acentava que nem uma luva. Na melhor das hipóteses, todos nos divertíamos com as suas faltas de atitude, opinião e mesmo presença. Por vezes, esquecíamos que ele estava lá e continuávamos a tentar adivinhar: uma neurose em criança, sociopata, vítima de abuso sexual, de violência doméstica... Tudo era motivo para atirar à sorte o problema do Miguel...O tempo passou, e nada se alterou entre risos e gargalhadas ainda está o silêncio presente do Miguel, aquele que hoje sei que só vive vivendo, dorme dormindo e acorda sonhando... Onde está o problema que tanto lhe queremos associar; ou talvez não exista! Nós sim temos um, o de querer que ele não seja normal; seremos nós os anormais? Acho que agora vivo vivendo, durmo dormindo e acordo interrogando...

Liliana Silva

sexta-feira, 16 de março de 2007

INFORMAÇÕES GENÉRICAS

A fanzine Dormitório pretende ser um espaço aberto a todos os que estejam interessados em ter trabalhos publicados. Qualquer pessoa pode enviar textos, fotografias ou imagens, que serão escolhidos pelos organizadores da fanzine. Estes trabalhos terão sempre de ir ao encontro do conceito de Dormitório e ao tema que será trabalhado em cada edição. Não existe nenhuma linha editorial específica, por isso os trabalhos poderão ter um tom mais humorístico ou realista; poderão escrever crónicas ou poemas ou pequenos contos. O mesmo se aplica a todos os trabalhos de imagem (fotografia, ilustração, banda desenhada, etc.). Nem todos os trabalhos serão publicados na edição em papel mas todos serão mostrados no blogue da fanzine.

A fanzine Dormitório deve ser vista como uma cidade ou vila, onde a maior parte da população apenas dorme na vila ou cidade, fazendo todas as suas actividades noutras cidades. Então o objectivo é relacionar cada tema, que pode ser abstracto ou concreto, de cada edição, com essa ideia de Dormitório.

Os trabalhos de texto não poderão ultrapassar o tamanho de uma A4, com letra em Times New Roman, tamanho 12. Os trabalhos de imagem, ou que incluam imagem, não poderão ultrapassar duas folhas A4. Se os vossos trabalhos exigirem um tipo de letra específico, indiquem-no e enviem-no na tipo de letra que quiserem.

Dormitório será trimestral e terá 8 páginas, salvo raras excepções. Todos os trabalhos terão de vir identificados com nome do autor ou o seu pseudónimo. Nenhum trabalhado será renumerado e todo o dinheiro proveniente de publicidade ou outro meio, será canalizado para a edição da fanzine.

Enviar trabalhos para: dormitorio@gmail.com

Edição 0, em papel, sai dia 30 de Março de 2007

ASTA